A Universidade Independente e a Licenciatura em Corrupção

Raros são os países considerados em vias de desenvolvimento que, no espaço de uma década, criam mais de vinte universidades, entre públicas e privadas. Só em 2009, por decreto presidencial, o governo criou seis novas universidades públicas. Angola é um dos países onde a massificação do ensino superior é extraordinária. Desde a fundação da Universidade Católica, em 2001, como a primeira instituição de ensino superior privado em Angola, o governo reconheceu outras quinze universidades privadas.

O presente texto não pretende abordar a qualidade e a regulamentação do ensino superior no país e, por conseguinte, da educação no seu todo. Opta, sim, por desmistificar alguns dos procedimentos políticos e comerciais, assim como os conflitos de interesse que facilitam a proliferação de universidades, à luz da legislação em vigor.

Como primeiro caso de estudo, Maka Angola apresenta os resultados do seu trabalho de investigação sobre a Universidade Independente de Angola (UnIA), fundada em 2004, ano em que também iniciou as suas actividades.

A Universidade Independente

A 14 de Março de 2009, o secretário de Estado para o Ensino Superior, Adão do Nascimento, inaugurou o novo edifício da Universidade Independente, na presença do então ministro da Educação, António Burity da Silva, seu superior hierárquico. Também marcou presença o então vice-ministro da Educação, Pinda Simão, actual titular da pasta (desde 2010). O edifício, orçado em US $12 milhões, é um investimento da empresa privada DEA (Desenvolvimento do Ensino em Angola S.A.), a proprietária da Universidade.

No referido acto, António Burity da Silva e o seu adjunto, Pinda Simão, foram apresentados apenas como convidados oficiais. No entanto, ambos eram os principais anfitriões da cerimónia na sua dupla função de responsáveis governamentais na área da educação e co-proprietários da UnIA. Por sua vez, o reitor da UnIA, Carlos Alberto Burity da Silva, irmão de António e também co-proprietário da UnIA, acumulava com as funções de director nacional do Gabinete de Estudos, Informação e Análises (GIA) do Ministério do Interior, enquanto Comissário da Polícia Nacional.

A estrutura societária da DEA é a seguinte:

Sócio

Cargo público à data da criação da DEA/ cargo público actual

Acções

António Burity da Silva

Ministro da Educação

40%

Pinda Simão

Vice-ministro da Educação/ Ministro da Educação

20%

Pedro Sebastião Teta

Vice-ministro da Ciência e Tecnologia

12,5%

Amadeu Lima de Carvalho (sócio português)

 

10%

Carlos A. Burity da Silva

Director Nacional GIA do Ministério do Interior/ Conselheiro do Comandante-Geral da Polícia Nacional para o Ensino Superior

10%

Eurico Gomes (sócio luso-angolano)

 

7,5%

No entanto, em declarações prestadas a um tribunal de Lisboa, o ex-ministro da Educação, António Burity, afirmou http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/nacional/ensino/ex-ministro-angolano-lesado-em-1-milhao-de-euros-por-rui-verde que havia concedido um empréstimo a Amadeu Lima de Carvalho para o pagamento de hipoteca de um imóvel e, por falta de pagamento, este perdeu os dez por cento que detinha na DEA

Por sua vez, Eurico Gomes é o principal sócio http://makaangola.org/2011/11/teta-financeira-a-tecnologia-do-desfalque/ do vice-ministro Teta numa série de negócios envolvendo o desvio de fundos públicos sob tutela do referido responsável governamental.

A Escola, a Pocilga e a Universidade

A construção da UnIA teve o envolvimento formal do Ministério da Educação, órgão tutelado por António Burity da Silva e Pinda Simão, através da sua Delegação Provincial de Luanda, que remeteu, junto do Governo Provincial de Luanda, o pedido formal para a realização de obras numa escola primária pública. Foi precisamente nesse local, o Morro Bento, em Luanda, que se ergueu a UnIA.

Conforme documentos analisados a 30 de Março de 2004, o Delegado Provincial de Educação de Luanda, André Soma, remeteu à Direcção dos Serviços de Planeamento e Gestão Urbana (DSPGU), do Governo Provincial de Luanda um ofício (n.º 0117/GAB/DP/2004) solicitando uma licença para “obras de melhoramento e restauro de Escola Primária Pública”.

Por sua vez, com celeridade extraordinária, no mesmo dia, a 30 de Março de 2004, o director do DSPGU, Joaquim Israel Marques, concedeu autorização para a realização das seguintes obras na referida escola:

  • “Picagens, reboco, pintura interior e exterior, substituição e impermeabilização de cobertura;
  • Substituição dos pavimentos, dos azulejos, da loiça sanitária e equipamentos de cozinha;
  • Reparação ou substituição de redes domiciliares de esgoto, água e electricidade.”

O DSPGU mais esclareceu, ao conceder a licença de obras, “que não está autorizada qualquer intervenção na parte estrutural do imóvel e que as obras serão fiscalizadas pelos serviços competentes”.

Após a sua construção, dois anos antes, a referida escola primária manteve-se encerrada por ordem da Delegação Provincial de Educação, e a sua estrutura votada ao abandono. Todavia, o delegado provincial André Soma detinha o controlo particular do terreno escolar e aproveitava para ali estabelecer uma pocilga, gerindo assim um pequeno negócio privado de criação de porcos. Alguns cidadãos usavam também as instalações para guardar animais, que depois seguiam para o matadouro, do outro lado da rua.

Conforme informação prestada por alguns entrevistados, André Soma agiu como o principal testa-de-ferro do seu então superior hierárquico, António Burity da Silva, na articulação com os empreiteiros que ergueram a universidade, ao invés de procederem à reabilitação da escola primária pública. Meses mais tarde, recebeu da DEA, a 20 de Setembro de 2004, a soma de US $6,340, transferida para a sua conta privada no Banco de Fomento de Angola. Entidades envolvidas no processo afirmam que André Soma havia concedido ilegalmente o terreno da escola pública, que se encontrava sob sua tutela e que ocupava com o seu negócio pecuário, na expectativa de se fazer sócio da universidade. No entanto, uma vez consolidado o projecto, os seus superiores hierárquicos, António Burity da Silva e Pinda Simão, decidiram mantê-lo apenas no cargo de delegado provincial de Educação, que exerce há mais de vinte anos.

Por sua vez, donos de consideráveis fortunas depositadas em paraísos fiscais, através de offshores de bancos portugueses, os sócios angolanos transferiam para Portugal, para a emissão de garantias e pagamentos, os fundos iniciais necessários à construção da universidade. Por exemplo, António Burity da Silva emitiu, a 30 de Agosto de 2005, um cheque no valor de dois milhões de euros, da sua conta domiciliada na offshore do Banco Comercial Português nas Ilhas Caimão, o BCP Bank & Trust (Cayman) Limited. Passou-o a favor do sócio português Amadeu Lima de Carvalho, para as operações a partir de Portugal.

Por outro lado, vendo-se na contingência de obter um empréstimo bancário junto do Banco de Fomento de Angola (BFA), no valor de US $350 mil, para a prossecução das obras, o então vice e actual ministro da Educação, Pinda Simão, e o vice-ministro da Ciência e Tecnologia, Pedro Sebastião Teta, serviram de garantes do empréstimo solicitado pela DEA.

O BFA aprovou a concessão de crédito a 10 de Dezembro de 2012, para um período de 36 meses a uma taxa de juros bonificada de dez por cento ao ano.

Os Conflitos de Interesse

Por altura da criação da universidade vigorava, em Angola, a Lei dos Crimes Cometidos por Titulares de Cargos de Responsabilidade (Lei n.º 21/90), que proibia os titulares de cargos públicos de participação económica em negócio sobre o qual tinham poder de influência ou decisão (art. 10.º, 2.º). A Lei da Probidade Administrativa incorpora a mesma medida legal (Art. 25.º, 1.º, a).

O presidente da República, José Eduardo dos Santos, promulgou, a 5 de Abril de 2005, o Decreto n.º 11/05, que autorizou a empresa DEA a criar a UnIA. A universidade já se encontrava em funcionamento, tendo o decreto presidencial conferido poderes ao então ministro da Educação, António Burity da Silva, para aprovar os cursos ministrados pela UnIA (Art. 2.º), os seus estatutos e regulamentos (Art. 5.º, 1.º), bem como a responsabilidade pela avaliação periódica da referida instituição (Art. 5.º, 2.º).

Por sua vez, a 19 de Junho de 2006, na qualidade de ministro da Educação, António Burity da Silva exarou o Decreto Executivo n.º 74/06, autorizando a sua universidade privada a criar os cursos de licenciatura em Ciências da Comunicação, Engenharia Civil, Engenharia Informática e Engenharia de Recursos Naturais e Ambiente, tendo também aprovado os respectivos planos curriculares.

A 18 de Agosto de 2008, coube ao secretário de Estado para o Ensino Superior, Adão do Nascimento, enquanto subordinado de António Burity da Silva, assinar o Decreto Executivo n.º 215/08, que autorizava a UnIA a ministrar os cursos de Direito, Engenharia Electrónica de Telecomunicações e Gestão e Marketing. A referida medida tinha efeitos retroactivos, pois os cursos já eram ministrados desde 2005.

A Lei da Corrupção

Sobre a narrativa dos factos acima reportados, destacam-se vários actos contrários à legislação em vigor.

O princípio da probidade pública impede o agente público de aceitar empréstimos, facilidades ou ofertas que possam afectar “a independência do seu juízo e a credibilidade e autoridade da administração pública, dos seus órgãos e serviços”. Ao servirem como avalistas da sua empresa privada, no empréstimo junto do BFA, os titulares de cargos públicos Pinda Simão, Pedro Sebastião Teta e o comissário Carlos Burity da Silva, colocaram em causa a credibilidade e a autoridade da administração pública, ao revelarem grave conflito de interesses. O BFA é um banco privado com capitais públicos através do investimento da Sonangol na UNITEL, que detém 49 por cento das acções do banco.

Por outro lado, António Burity da Silva, ao passar um cheque de dois milhões de euros a partir da sua conta particular domiciliada nas Ilhas Caimão, incorre também no crime de enriquecimento ilícito (Art. 25.º, 1.º, g), por ostentar um património financeiro incompatível com os seus rendimentos enquanto agente público.

António Burity da Silva, Pinda Simão e André Soma incorrem ainda no crime de enriquecimento ilícito (Art. 25.º, 1.º, j, k, da Lei da Probidade Pública) por integração, no seu património privado, de um terreno público sob tutela do Ministério da Educação. A referida legislação aplica-se também ao vice-ministro Pedro Sebastião Teta e ao actual conselheiro do comandante-geral da Polícia Nacional e reitor da UnIA, comissário Carlos Burity da Silva.

A acção de André Soma também viola a Lei da Probidade (Art. 18.º, 1.º, 2.º, a), por ter recebido de oferta a quantia de US $6,500 em troca da disponibilização de um terreno afecto ao Ministério da Educação, sob sua tutela enquanto responsável provincial do sector, bem como para a realização de actos administrativos a favor da DEA.

Para além das sanções penais, a Lei da Probidade (Art. 30.º, 1.º, b) prevê, para casos desta natureza, que os responsáveis pelos actos de corrupção estejam sujeitos, entre outra medidas, à “perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao seu património, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, pagamento de multa de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial ilícito e proibição de contratar com entidades públicas ou receber incentivos ou benefícios fiscais ou creditícios, directa ou indirectamente, ainda que por intermédio de pessoa colectiva da qual seja sócio maioritário, pelo prazo de 10 anos”.

Mas, entre pares, os sócios da DEA continuarão a contar com a solidariedade dos seus colegas do governo. Foi pela via da solidariedade institucional e da cobertura dos actos de corrupção que a ministra da Comunicação Social, Carolina Cerqueira, anunciou recentemente:  “Quando o ministério estiver a licenciar e autorizar o funcionamento das rádios comunitárias, a Rádio UnIA será das primeiras a merecer tal privilégio, visto que está na lista das prioridades pela sua importância.”

Conclusão

Em circunstâncias normais, e por lei, os sócios da DEA, ainda em funções públicas, deviam perder os seus cargos e responder em tribunal.

No entanto, os conflitos de interesse e actos de corrupção do ministro Burity da Silva e seus coadjutores, o seu irmão Carlos Burity da Silva, Pinda Simão e Pedro Sebastião Teta, tiveram o alto patrocínio do presidente da República. É o chefe de Estado e Governo o principal responsável e promotor dos actos mais gritantes de corrupção que têm lugar ao nível do governo, porque passam pelo Conselho de Ministros, onde invariavelmente José Eduardo dos Santos os aprova.

Assim, a corrupção é institucional. Qualquer política de combate contra a corrupção, dada a gravidade da situação no aparelho do Estado, deve ser, na verdade, um combate contra a institucionalização da corrupção pelo Presidente José Eduardo dos Santos, o garante da impunidade.

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