Fundo Soberano Paga US $100 Milhões a Empresa Fantasma

A 22 de Janeiro passado, o Fundo Soberano de Angola procedeu a uma transferência de 9 948 750 000 de kwanzas (equivalente na altura a cerca de US $100 milhões) à empresa Kijinga S.A. Trata-se de uma empresa-fantasma que serve para dar cobertura à transacções obscuras com o Banco Kwanza Invest (BKI), criado por José Filomeno dos Santos, actual presidente do Fundo Soberano e filho do presidente da República.

Estranhamente, a Kijinga S.A. partilha escritório com o BKI, na Avenida Comandante Jika, n.º 150, junto à Maternidade de Luanda. Esse endereço tem apenas uma porta e, à entrada, uma estreita antessala, onde se encontra a recepcionista e duas cadeiras para visitantes, numa dais quais se senta regularmente o segurança interno, para além do guarda que está à porta da entrada. O edifício térreo, todo envidraçado e fumado, não permite qualquer visualização do seu interior. A partir da antessala vê-se apenas uma porta que dá para o interior do banco e da empresa Kijinga S.A.
 
Segundo documentos obtidos por Maka Angola, o Fundo Soberano procedeu à transacção acima mencionada através da sua conta no Banco de Poupança e Crédito, com conhecimento do Banco Nacional de Angola, para a conta número AO06005700000014010400124, pertencente à Kijinga S.A. e domiciliada no BKI.

A transacção especifica apenas que se trata do pagamento de uma nota de cobrança, datada de 13 de Janeiro de 2015.

Um documento oficial Administração Geral Tributária do Ministério das Finanças, em posse de Maka Angola e datado de 5 de Fevereiro de 2015, revela que a Kijinga S.A. não tem ao seu serviço um funcionário sequer.

Como pode uma empresa sem qualquer funcionário declarado prestar serviços ao Fundo Soberano no valor de quase US $100 milhões? Eis a questão.

O que é a Kijinga S.A.?

A Kijinga S.A. foi constituída a 4 de Dezembro de 2012, tendo como accionistas formais Pascoalina Natacha Daniel Sambo, Sendji Alexandre Vieira Dias, Mário Augusto dos Santos Mangueira, Cira Cláudia Ferreira Custódio Medrôa e Djanir de Nazaré Ferreira da Conceição (ora Junqueira).

Maka Angola procedeu a uma breve investigação sobre os constituintes da empresa.

No seu perfil profissional, Pascoalina Sambo apresenta-se como subdirectora do Gabinete Jurídico do Banco Kwanza Invest, desde Julho de 2012.

Por sua vez, Cira Cláudia Ferreira Custódio Medrôa é funcionária do Banco Kwanza Invest desde Outubro de 2012. Segundo o seu perfil público, iniciou funções no banco como secretária executiva e supervisora de recepcionistas, e actualmente é oficial de compliance.

Djanir de Nazaré Ferreira da Conceição (ora Junqueira), também trabalhava no BKI, por altura da criação da empresa.

Mário Augusto dos Santos Mangueira é, desde 2012, gestor no Fundo Activo de Capital de Risco (FACRA).

O FACRA foi criado por José Eduardo dos Santos, com fundos públicos, através do Decreto Presidencial n.º 108/12, para o apoio a micro, pequenas e médias empresas. No entanto, a gestão privada e exclusiva dos fundos do FACRA é feita pelo BKI. O sócio maioritário nominal do banco, com 85 por cento do capital, Jean-Claude Bastos de Morais, é um dos três membros do Conselho de Supervisão do FACRA, a sua entidade máxima. A comissão de investimentos do fundo é presidida por Marcel Kruse, administrador do BKI.

Em 2013, o BKI detinha já, como depósitos do FACRA, o montante de 6,7 mil milhões de kwanzas (US $70.5 milhões, na altura), segundo o seu relatório de contas referente a esse ano. Em Janeiro passado, o FACRA anunciou ter disponíveis US $240 milhões para apoio às micro, pequenas e médias empresas.

O único indivíduo da lista que não tem, aparentemente, quaisquer ligações institucionais ao BKI ou aos seus sócios e gestores é Sendji Alexandre Vieira Dias, quadro da empresa nacional de diamantes, a Endiama.

Contactado por Maka Angola, Mário Augusto dos Santos Mangueira recusou ter tido qualquer relação com o Banco Kwanza ou com a Kijinga S.A. “É muito estranho que o senhor esteja a ligar para mim para fazer essa pergunta”, afirmou. Prometeu organizar um encontro, em função da sua agenda, para discutir o assunto; todavia, passado um mês, não encontrou disponibilidade para o efeito.

Entretanto, Pascoalina Natacha Daniel Sambo explicou ao Maka Angola que “passámos [accionistas nominais] as acções para o Banco Kwanza logo na constituição da empresa”. Sobre outras questões relacionadas com a actividade da empresa e a permanência dos nomes dos testas-de-ferro como accionistas, Pascoalina Sambo remeteu-as para o proprietário da empresa. “As questões têm de ser colocadas ao Banco Kwanza”, disse.

A Kijinga tem como objecto social:
“a prestação de serviços de gestão e apoio às empresas, a realização e desenvolvimento em todas as suas vertentes de estudos e projectos de qualquer natureza, incluindo projectos agrícolas e projectos industriais, a promoção imobiliária, a compra, venda e locação de bens móveis ou imóveis, o comércio geral por grosso ou a retalho, incluindo importação e exportação, e, em geral, o exercício, directa ou indirectamente, de quaisquer actividades de natureza comercial ou industrial permitidas por lei.”

É parte ainda do objecto social da empresa a capacidade de:
“adquirir e alienar participações em sociedades, de direito nacional ou estrangeiro, com o objecto igual ou diferente do seu, bem como associar-se com outras pessoas jurídicas para, nomeadamente, constituir novas sociedades, agrupamentos de empresas, consórcios, conta em participação e associações em participação.

A reacção do Fundo e o silêncio do BKI

Questionado sobre a transferência, o presidente do Fundo Soberano de Angola, José Filomeno dos Santos, prestou a seguinte informação, ao Maka Angola, via e-mail.

“O Fundo Soberano de Angola realizou o capital próprio de 9.950.750.000,00 Kwanzas num veículo comercial que está focado para a criação de incubadoras de micro-negócios para os empresários angolanos. Esta iniciativa representa o primeiro projecto de integração social no país realizado como um empreendimento comercial sustentável”.

“O FSDEA agendou o anúncio público deste investimento para os próximos dias, em conjunto com outros cinco fundos de investimento recém-certificados que visam o desenvolvimento económico e social em Angola e em toda a África Subsaariana. Convidamo-lo a referir este anúncio eminente para informações adicionais”, acrescentou José Filomeno dos Santos.

Maka Angola deslocou-se ao Banco Kwanza para contactar a direcção desta instituição, com vista a recolher os devidos esclarecimentos, mas sem sucesso. Um pedido para falar com o gabinete jurídico resultou na resposta reiterada de um funcionário, que se identificou como Paulo Ngunza, de que “o banco não tem área jurídica”. Tentativas, por via telefónica e por e-mail, para obter a versão oficial do banco também redundaram em fracasso.

Ver fantasmas na lavandaria

Um jurista com responsabilidades no aparelho do Estado, e que prefere o anonimato, teceu um comentário acerca da inexistência de trabalhadores declarados por parte da Kijinga S.A. “Se a empresa não tem trabalhadores, não existe. Mesmo que se encontrasse na fase embrionária de criação, ainda assim teria de ter um número de representantes legalmente estabelecido, de acordo com o tipo e a natureza da empresa.”.

Entretanto, um especialista internacional em assuntos de branqueamento de capitais, e profundo conhecedor do sistema bancário angolano, “há claramente algo escondido na relação entre o Fundo Soberano, a Kijinga S.A. e o Banco Kwanza Invest”.

“Não se mistura a actividade bancária com outro tipo de negócios, na mesma sede. Isso é algo obscuro, que viola os padrões internacionais de actividade bancária adoptados por Angola e que devem ser respeitados”, afirmou o jurista, quando contactado por Maka Angola.

De acordo com o mesmo especialista, “o sector bancário é extremamente regulado. Há a probabilidade de pessoas à volta do filho do presidente, que é uma Pessoa Politicamente Exposta, estarem a realizar actividades de branqueamento de capitais através do BKI. Deve haver uma investigação séria sobre o assunto”.

A Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento ao Terrorismo define como “pessoas politicamente expostas” todos os “singulares que desempenham, ou desempenharam até há um ano, cargos de natureza política ou pública, bem como os membros próximos da sua família e pessoas que reconhecidamente tenham com elas estreitas relações de natureza societária ou comercial”.

O obscuro Banco Kwanza Invest

Em Junho de 2012, José Filomeno dos Santos renunciou formalmente ao cargo de administrador do BKI, do qual era o sócio maioritário, detendo 45,33 por cento das acções. Anunciou também a intenção de vender as referidas acções, de modo a evitar conflitos de interesse com a sua função de administrador do Fundo Soberano de Angola.

Essas acções foram transferidas para a titularidade do cidadão suíço-angolano Jean-Claude Bastos de Morais, que inicialmente detinha 39,67 por cento do BKI. Bastos de Morais passou então a ter em seu nome, formalmente, 85 por cento das acções do banco. No entanto, os relatórios e contas de 2012 e 2013 do BKI não fazem qualquer menção à transacção.

Para além da sua conotação com o filho do presidente, o banco destaca-se pela soberba de Jean-Claude Bastos de Morais, o mentor e sócio em grande parte dos negócios de Zenú, e pela sua falta de transparência.

Sobre si próprio, Jean-Claude Bastos de Morais afirmara, em 2012, a um jornal suíço: “Sou uma máquina de ideias”. Ao Handelszeitung, revelara que tinha sido sua a ideia de criação do FACRA, e que o ministro da Economia, Abraão Gourgel, servira de veículo para a sua implementação. É o mesmo Abraão Gourgel que, na altura em que desempenhava as funções de governador do Banco Nacional de Angola, encaminhou para o BKI contratos de gestão de centenas de milhões de dólares de fundos públicos.

Incontinente, Jean-Claude Bastos de Morais, afirmou ao jornal suíço ter sido ele também o “cérebro” da ideia de criação do Fundo Soberano de Angola.

Desavindos na informação ao público, o administrador executivo do BKI, Marcel Kruse, disse à Deutsche Welle, em 2013, que o BKI se candidatara à gestão do FACRA.

“Somos um entre 23 bancos, mas os únicos especializados em investment banking [banca de investimento]. O nosso cliente, o Estado angolano, é da opinião que todos os outros bancos teriam conflitos de interesses e que nós seríamos os melhor posicionados para prestar esse serviço", enfatizou, na altura, Marcel Kruse.

Apesar de o banco obter centenas de milhões de dólares em fundos do Estado angolano, a sua gestão levanta muitas questões sobre a idoneidade dos seus proprietários e gestores.

Para a auditoria de 2011 e 2012, as primeiras a serem do domínio público desde o seu estabelecimento em 2008, a A. Paredes e Associados – Angola, Auditores e Consultores Lda., informou a administração do banco que:
“até à data deste relatório, não obtivemos respostas para um número significativo de pedidos de confirmação de saldos, transacções e outras informações, solicitados a várias entidades, nem nos foi possível efectuar procedimentos alternativos eficazes no que se refere aos saldos devedores e credores registados nas rubricas “Outros valores”, “Depósitos” e “Outras obrigações”, de acordo com o seguinte detalhe (saldos devedores / (saldos credores)”.

A escassez de informação sobre o BKI levou este portal a rever, com o apoio de peritos, o último relatório e contas da instituição, datado de 2013, para ajudar os leitores a compreender a natureza e a gestão do banco. O BKI teve, em 2013, um resultado negativo de US $225 milhões, que transformou, sem explicação plausível, em resultado positivo de US $283 milhões.

Ressalta, à partida, a falta de informação no relatório. Tanto o balanço como a demonstração de resultados remetem para notas explicativas que, por sua vez, pouco ou nada esclarecem.  

Não há qualquer informação acerca da estrutura organizativa do banco, quais as suas áreas de negócio ou quem são as pessoas que ocupam os lugares-chave da instituição – e tudo isto é informação obrigatória, de acordo com a lei angolana. O balanço do banco triplica, do lado do activo, através de "aplicações de liquidez", e, do lado do passivo, através de "outras captações", sem qualquer explicação sobre o que sejam estas outras captações. Intui-se apenas que não são depósitos, capital, dívida sénior ou dívida subordinada, dado que estas têm rubricas específicas imutáveis.    

O banco apresenta resultados negativos que são em resultado líquido positivo e reflectido no balanço. No entanto, não se explica o que são estes "encargos sobre o resultado corrente". Seria fundamental explicar como se transformou um resultado negativo de US $225 milhões (linha XIX das Demonstrações Financeiras) num resultado positivo de US $283 milhões (linha XX das Demonstrações Financeiras). A página 14 do referido relatório apresenta umas notas sobre US $247 milhões, de "credores por aquisição de bens e direitos". Dada a sua materialidade, deveria, no mínimo ser melhor explicado do que se trata.

Os administradores executivos do BKI, Jean-Claude Bastos de Morais (sócio maioritário nominal) e Marcel Kruse, estão cadastrados na Suíça por gestão criminosa. Ambos foram condenados a 13 de Julho de 2011, no Cantão de Zug, por “reincidência em actos de gestão criminosa qualificada”.

A soberania do Fundo

José Filomeno dos Santos "Zenú", durante uma exibição de artes plásticas em Luanda.

No ano passado, o presidente do Fundo Soberano, José Filomeno dos Santos, negou publicamente que a instituição por si dirigida tivesse quaisquer relações de negócio com o Banco Kwanza Invest. Para além dotação inicial de US $5 biliões, com o seu estabelecimento formal em 2012, o fundo recebe o equivalente a 100,000 barris de petróleo por dia, conforme o Decreto Presidencial n.º 48/11.

Dos Santos teve de explicar também a escolha do Quantum Global Investment Management (QGIM) para a gestão de US $3 biliões do Fundo Soberano. Segundo o website do QGIM, o seu fundador e presidente é nada mais nada menos do que Jean-Claude Bastos de Morais.

Essa pequena firma, baseada na Suíça e sem credibilidade quer a nível local quer internacional, ganhou a confiança de Zenú, porque, ora vejam, foi bem-sucedida na gestão de fundos do Banco Nacional de Angola.

A relação de amizade e negócios entre José Filomeno dos Santos e Jean-Claude Bastos de Morais teve um grande impulso em 2007, com a criação de várias empresas por ambos, associados a Mirco de Jesus Martins, enteado do vice-presidente Manuel Vicente e seu testa-de-ferro em vários negócios. Entre Junho e Outubro de 2007, formaram cinco empresas, nomeadamente a Augra S.A., a Benfin S.A., a Benguela Development S.A., a Calfisa S.A. e a Sociedade de Urbanização da Graça S.A. Todas essas empresas foram criadas para intervenção na província de Benguela, sobretudo, no sector da construção civil, comércio, importação e exportação e outras “actividades de natureza comercial ou industrial desde que permitidas por lei”.

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