Justiça Absurda – a Decisão Inconstitucional do Julgado de Menores

O Julgado de Menores mantém seis crianças, menores de 14 anos, sob termo de identidade e residência. O Maka Angola publica a análise jurídica de Rui Verde sobre o caso. Mas antes apresentamos uma breve narrativa dos factos que ilustram o absurdo da justiça em Angola.

Na madrugada de 18 de Junho passado, agentes policiais da Divisão do Sambizanga realizaram uma operação em várias residências do Bairro Ngola Kiluange, em Luanda, que resultou na detenção de seis meninos, todos menores de 14 anos.

A operação foi efectuada sem qualquer mandado de busca ou captura, e as crianças foram acusadas de, um mês antes, terem incendiado uma viatura avariada. As crianças passaram uma semana detidas na Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC).

Durante a audiência de julgamento, a 25 de Junho, a juíza do Julgado de Menores, Paula Rangel Cabral aplicou “medidas de prevenção criminal” aos menores. A juíza ordenou que os pais comparecessem, acompanhados dos filhos, nos dias 24 de Setembro e 24 de Dezembro de 2014, naquela instância judicial, com vista a prestarem declarações sobre o comportamento dos mesmos.
 

Nem a polícia nem o tribunal se dignaram a revelar, durante o processo, quem apresentou a queixa contra as crianças ou quem são as testemunhas da acusação. As famílias dos menores, pobres e desconhecedoras dos seus direitos elementares de acesso à justiça, não tiveram acesso a um defensor oficioso para reclamar a inocência dos petizes.
 

Não Basta Fazer Boas Leis, É Preciso Aplicá-las

Um destes dias, de forma algo rocambolesca, a polícia deteve alguns menores de 14 anos acusados de terem incendiado um jipe. Esta situação causa perplexidade

Há uma afirmação comum em Direito: o direito processual penal é direito constitucional aplicado. Isto quer dizer que é nas questões ligadas à detenção de pessoas, à sua coacção e à privação de liberdade que consiste o teste do bom funcionamento de qualquer Constituição.

O mesmo acontece com a Constituição angolana. Esta só será uma boa Constituição se plenamente aplicada nos casos concretos.

Ora, esta circunstância de se prenderem menores na ausência de flagrante delito, além de se lhes aplicar a medida de coacção de termo de identidade e residência, configura um caso de gritante inconstitucionalidade e ilegalidade.

Chamamos à colação o artigo 6.º, n.º 1 e 2 da Constituição, que afirma justamente ser a Constituição a lei suprema do país, e que o Estado se subordina à Constituição e se funda na legalidade, devendo respeitar as leis.

Seguimos invocando o artigo 63.º da CRA, que prescreve, sem admitir excepção, que toda a pessoa privada de liberdade só o pode ser perante a exibição de mandado de detenção ou em flagrante delito.

No caso concreto, segundo os relatos da imprensa, nem uma coisa nem outra aconteceram. Os menores foram detidos sem mandado e na ausência de flagrante delito. Primeira ilegalidade.

Nos termos do artigo 65.º da mesma Constituição, a responsabilidade penal é pessoal e intransmissível. É sabido que menores de 14 anos não têm responsabilidade penal, nos termos da lei, sendo-lhes aplicada uma lei especial. Aqui, então, encontramos a segunda ilegalidade.

A Constituição também consagra como dever do Estado proteger a infância e os jovens (artigos 80.º e 81.º). E será por esta razão que existe uma lei própria para menores, que atribui as competências judiciais ao Julgado de Menores para decidir em questões a estes relativas.

É exactamente por existir uma lei especial para menores que não tem qualquer sentido aplicar uma lei geral penal. Recorde-se o velho brocardo latino que inspirou gerações de juristas ao longo de séculos: Lex specialis derogat legi generali. Assim, se há uma lei para menores, não se aplica a lei penal.

A responsabilidade penal e a delinquência são conceitos jurídicos que não se aplicam a menores de 14 anos. A lei fala em pré-delinquência e em prevenção criminal. A estes é aplicada a Lei do Julgado de Menores.

Sobre questões criminais, a Lei retira qualquer possibilidade de aplicação de medidas de natureza criminal a menores de 12 anos.

Para os menores que tenham entre 12 e 16 anos, há um regime especial de aplicação taxativa de medidas de prevenção criminal, as quais consitem em: repreensão, imposição de regras de conduta; condenação por meio de multas ou restituições; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; semi-internamento em estabelecimento de assistência ou educativo e internamento em estabelecimento de assistência ou educativo. Reforce-se que estas medidas só deverão ser aplicadas a maiores de 12 anos.

Por este excurso se vê que as situações de menores devem ser tratadas segundo leis próprias e em termos específicos, e que não faz sentido aplicar medidas de coacção a menores, como fez o TIR, ou quaisquer outras. O que se deve fazer é aplicar as medidas previstas na Lei do Julgado de Menores.

Mesmo que assim não fosse, não se pode prender indivíduos na ausência de flagrante delito, sem mandado de detenção.

A Constituição e as Leis são para cumprir, sobretudo no que diz respeito a uma questão tão sensível como a prisão e violação de liberdade.

Rui Verde, Doutor em Direito

 

 

 

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