Tribunal Ignora Lei de Imprensa

O julgamento do jornalista Ramiro Aleixo teve início ontem, no Tribunal Provincial de Luanda. O jornalista é acusado pelo Ministério Público de difamação, calúnia e injúria dos órgãos de justiça militar. Em Setembro de 2007, o réu escreveu dois artigos no jornal que dirigia, Kesongo, sobre o julgamento e a condenação do ex-chefe dos Serviços de Inteligência Externa, general Fernando Garcia Miala, tendo-o considerado uma farsa. Inicialmente, a sociedade angolana teve conhecimento público de uma sindicância contra o general Miala, sob a acusação de tentativa de golpe de Estado.

Para espanto do jornalista e, de um modo geral, da opinião pública nacional, o general Miala respondeu em tribunal por insubordinação, por se ter recusado a comparecer em cerimónia pública para a sua desgraduação de general ao grau de tenente-general. Foi condenado a quatro anos de prisão efectiva, assim como três dos seus mais próximos colaboradores, sentenciados a dois anos e meio de prisão efectiva cada.

No texto “O País Tomou Rumo Perigoso”, antes de emitir a sua opinião sobre o tratamento carcerário a que o general e os seus colaboradores estiveram sujeitos, em situação de prisão preventiva, e do julgamento em si, o jornalista regozijou-se com o papel da imprensa privada na cobertura do caso. Segundo Ramiro Aleixo, o Caso Miala “serviu para mostrar ao país e até ao mundo que é inquestionável a importância da prestação dos órgãos privados de comunicação social na democratização da nossa sociedade”. Mais afirmou que:

“Em todos os trabalhos de cobertura jornalística, nenhum órgão de comunicação social privado tomou o partido de Miala, dos seus subordinados nem de qualquer outro interveniente. Retrataram-se apenas factos e opiniões da sociedade, de especialistas em matéria de direito que, maioritariamente, porque até eles têm medo desse poder, preferiram opinar em off.”

Sem rodeios, o jornalista partilhou a sua opinião sobre o caso contra os altos oficiais dos serviços secretos angolanos. Segundo Ramiro Aleixo, “o julgamento de Miala e dos seus três subordinados foi uma farsa, porque os interesses do poder suplantaram os da Justiça isenta”. Afirmou ainda que, na “impossibilidade” de os queixosos apresentarem provas sobre uma suposta tentativa de golpe, “o presidente da República, José Eduardo dos Santos, transferiu para a alçada militar a responsabilidade de castigar esse seu antigo guarda-costas”.

No entanto, o julgamento de Ramiro Aleixo converteu-se em mais uma oportunidade extraordinária para avaliar o sistema de justiça em Angola. O réu foi notificado através de um edital publicado no diário oficioso Jornal de Angola, com a data de 11 de Abril de 2012. O juiz municipal Alfredo Lourenço Martins, que presidiu ao julgamento, alegou a decisão de se publicar o edital devido a supostas dificuldades que os oficiais de diligência tiveram em localizar o réu durante três anos. Na realidade, Ramiro Aleixo manteve sempre o mesmo endereço domiciliar, na província de Benguela, onde o jornal era publicado, e os dados sobre a sua residência constavam do edital. De 2009 a 2010, Ramiro Aleixo exerceu as funções de porta-voz do Comité Organizador do Campeonato Africano das Nações (COCAN), em Benguela, com bastante visibilidade mediática.

Do ponto de vista legal, a acusação padece de dois sérios problemas. O Ministério Público, representado por Teresa Caumba, procedeu com a acusação baseando-se única e exclusivamente no Código de Processo Penal, ignorando, na sua integridade, a Lei de Imprensa, que rege o exercício do jornalismo. A acusação sustenta a agravação da responsabilidade criminal do arguido, denunciando que o mesmo “cometeu o crime com excesso de poderes”, baseando-se no Art. 13.º, 11.º, do Código do Processo Penal. A acusação não prestou quaisquer informações sobre o tipo de poderes usados pelo jornalista e com suposto excesso.

O segundo problema é de jurisdição. Nos termos do Art. 45.º do Código do Processo Penal, é competente o tribunal em cujo território o crime foi praticado. Ramiro Aleixo publicou o seu texto no semanário Kesongo, cuja sede era em Benguela, onde também se imprimia e distribuía o jornal. Por essa razão, é da competência do Tribunal Provincial de Benguela julgar o caso, e não do de Luanda, conforme argumentos do advogado de defesa, Benja Satula.

Por outro lado, nem o juiz nem a representante do Ministério Público manifestaram interesse em ouvir o declarante, o actual procurador-geral adjunto da República para as Forças Armadas Angolanas, general Hélder Pitra Gróz. O juiz dirigiu-lhe apenas uma pergunta sobre o seu tempo de serviço na justiça militar. A procuradora Teresa Caumba dispensou o declarante, alegando que a queixa constava dos autos e, para o efeito, não precisava de fazer mais perguntas.

No entanto, ao responder às perguntas do advogado de defesa sobre o suposto golpe de estado, o General Pitra Grós fez uma revelação que bem poderia ter sido copiada do segundo texto de Ramiro Aleixo, “A História Está Mal Contada”. Aqui, o articulista afirmou: “Não conheço um só caso em África de alguém que, acusado de tentativa de golpe, não tenha sido preso, não foi forçado ao exílio ou não tenha sido barbaramente assassinado, com ou sem julgamento”.

O general Pitra Grós defendeu a posição do comandante-em-chefe e do regime, dizendo o mesmo. Com diferença semântica apenas, o general afirmou, ao invés de “barbaramente assassinado”, “ou não acontece o pior, como ser morto”. Esta última parte não foi lida para os autos.

O jornalista mal conseguia esconder a sua incredulidade ante a corroboração do general sobre o mesmo texto considerado difamatório, calunioso e injurioso. O general manteve-se, até à sua saída da sala, a olhar para os seus botões e a falar em tom sempre muito baixo, como se estivesse a evitar que o percebessem.

De certo modo, o ambiente sufocante da sala de julgamento também manifesta a importância institucional que se atribui à realização da justiça. A assistente do juiz, talvez enfraquecida pelo calor, adormeceu, indiferente ao que se passava durante a audiência, tendo requerido a intervenção do magistrado para a despertar do torpor em que se encontrava. Das sessenta luzes no tecto da sala, apenas dezassete se mantinham em funcionamento, criando um ambiente sombrio. A sujidade das paredes brancas, ora acastanhadas, no corredor, indicavam certo estado de incúria. A procuradora reclamou cansaço, ante o vigor do advogado de defesa, que se manifestava preparado para apresentar as alegações.

No fim da audiência, que durou quatro horas e meia, o juiz agendou para 25 de Maio de 2012 a apresentação das alegações por parte da defesa, dos quesitos e a leitura da sentença. Tudo no mesmo dia.

Benja Satula abanou a cabeça. Arriscou. Disse que poderia ser castigado afirmando que o juiz, se assim procedesse, com a apresentação das alegações, quesitos e leitura da sentença no mesmo dia, já teria lavrado a sentença antes do julgamento.

É arrepiante notar que, perante um dos maiores crescimentos económicos do mundo, o regime não tem dinheiro para substituir as lâmpadas de um tribunal onde procura defender a honra e a dignidade dos seus principais dirigentes. Muito menos para reparar os ares condicionados e garantir conforto aos magistrados, que arrepiam os caminhos da lei para os defenderem.

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